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POR UM CINEMA MAIS CIBORGUE |
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Cinema e feminismo nos dias de hoje.
POR LAILA DOMITH |
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A máquina não é uma coisa a ser animada, idolatrada e dominada. A máquina coincide conosco, com nossos processos; ela é um aspecto de nossa corporificação. Podemos ser responsáveis pelas máquinas; ela não nos dominam ou nos ameaçam. Nós somos responsáveis pelas fronteiras; nós somos essas fronteiras.
(Donna Haraway em Manifesto Ciborgue) |
Durante um tempo tive questões e inquietações para pensar a tecnologia e as máquinas que se mostravam como um futurismo. Como um futuro apocalíptico, como as imagens da ficção científica que assombravam e contraditoriamente entediavam a minha infância já que não me interessavam. A caricatura determinista, os laboratórios brancos-cientistas, os chips, as intervenções e o simbolismo do macho-alfa Arnold Schwarzenegger – plástica e hormonalmente produzido – exterminando o futuro a serviço de relações viris de poder. O futurismo – patriarcal imperialista capitalista branco – de Marinetti. Se fosse assim, eu preferiria não como já nos dizia o escriturário Bartlebly. A minha inclinação já desde então feminista e inquieta não me deixava simpatia pelas máquinas em nome do progresso positivista ou em nome do apocalipse tecnológico.
Entretanto, alguns encontros me fizeram poder pensar estas máquinas-humanas de outras maneiras. E é este o meu convite hoje e nas próximas publicações desta coluna que chamaremos de “Coluna Ciborgue”.
Preciado. Beatriz. Manifiesto Contrasexual. Barcelona: Anagrama.
E o que máquinas, ciborgues, feminismo e festival gay de cinema têm em comum? Ou melhor, como pretendo articular tudo isso nesta coluna e nestas publicações periódicas?
Bom, a história começa quando alguns pensamentos dos movimentos feministas se perguntam: “quem são – ou podem ser – hoje as mulheres?”. Deparam-se então com um binarismo (mulheres e homens) e com exclusões. Pois a partir do momento que dizemos mulheres, excluímos gays, trans, intersexuais e até mesmo as lésbicas, ao menos dentro de uma certa perspectiva na qual algumas vozes destes feminismos se colocavam. A questão ainda se agrava quando nos deparamos com as exclusões que se inter-relacionam e que se referem à classe, à raça e ao gênero. Como nos mostrou Donna Haraway – autora do Manifesto Ciborgue – a categoria “mulher” exclui, em uma hierarquia de identidades, as mulheres negras, assim como, a categoria “negro” exclui as mulheres negras. Estas categorizações acabam por se colocar como um âmbito de outras exclusões. Aprendemos que a raça, o gênero e a classe são construções históricas e sociais complexas enredadas pelo colonialismo, o patriarcalismo e o capitalismo burguês. São diferenciações que não se referem à natureza humana, mas às construções sociais que se perfazem em meio às relações de poder e dominação.
O feminismo, portanto, se vê em uma encruzilhada: ou abandona ‘a mulher’ ou no contemporâneo reforça mecanismos de dominação e exclusão. Mas como pode ser o feminismo sem a mulher, ou melhor, devemos dizer sem a categorização mulher.
Um certo feminismo, então, se torna ciborgue. Nem homem, nem mulher, nem hetero, nem homo, nem trans, nem humano, nem máquina. Algo entre o ser falante e a máquina. Aqui não se pretende salvar o homem e nem a humanidade. Insalváveis. Alguns vão chamar de pós-feminismo, ou de feminismo pós-moderno, mas não nos importa o nome que nos deem, poderia ser um feminismo queer, mas aqui vamos chamar de feminismo ciborgue.
Mirror's Edge © DICE
Por outro lado, ainda nos inquietam as máquinas. Por que nos aliarmos aos ciborgues? E o que o cinema tem com isso? Vamos por partes.
Na grande maioria das vezes que entre as pessoas eu começo a me colocar como ciborgue eu percebo um estranhamento nos olhares, mas o mais instigante é quando faço coro com a Donna Haraway e digo “Somos todos Ciborgues”.
Pensemos no chamado biológico: o humano há muito não se faz sem o acoplamento de diversas tecnologias. Pensemos na medicina e o que é feito com o nosso corpo. Vamos ao que nem é visível para começar: os hormônios. A indústria farmacêutica nunca vendeu tantos remédios como o faz com as pílulas anticoncepcionais femininas. E isso para pessoas que não estão doentes e apenas para mulheres que os tomam religiosamente todos os dias. Não há para homens pílulas anticoncepcionais. Homens tomam Viagra. Cada performance de gênero e o seu remédio indicado. Fica a provocação, mas falaremos sobre ela em alguma outra publicação. Ainda para o biológico temos na reprodução: a cesariana, a reprodução induzida/assistida, inseminação artificial. Além disso, temos as próteses cuja produção vem na cola da segunda guerra mundial e os seus soldados multilados, mas que hoje se prestam aos mais diversos propósitos – inclusive sexuais como nos mostra Beatriz Preciado.
E se por um lado ser ciborgue pode nos causar estranheza, aversão ao Robocop e ao Exterminador do Futuro ou um saudosismo do humanismo napoleônico, ser ciborgue também nos abre “um grande e insuspeitado espaço de liberdade”, como já nos dizia Walter Benjamin, que nos mostrou – ainda no século passado – como o cinema nos havia tornado ciborgues no olhar. E aí chegamos a outro ponto em que este devir ciborgue se apresenta. O cinema introduz novas maneiras de ser, estar e ver o mundo. Primeiro acoplando a câmera – prótese do olhar – e com ela diversas tecnologias que nos fazem ver mundos diferentes. Acoplamos aos limites dos nossos olhos a câmera lenta, o olhar subjetivo, o close, as trucagens de Meliès, a velocidade, depois a parada. Ainda que tempos depois venha a televisão e sua insistência em nos fazer ver mundos sempre iguais.
As tecnologias e as máquinas da imprensa, do correio e da televisão modificaram nossa forma de nos comunicarmos. E o que dizer agora dos telefones, telefones portáveis, da internet e da internet portável nos telefones. Será que ainda nos reconhecemos sem as nossas máquinas?
Já tentando finalizar esta primeira coluna de boas-vindas aos ciborgues quero dizer: sim, somos ciborgues! E o que pode haver de bom nisso?
Retomo aqui o Walter Benjamin e seu “insuspeitado espaço de liberdade”. Ao velarmos a morte do humano e acolhermos o ciborgue que há em nós, deixamos para trás uma série de crenças que nos aprisionam, crenças mesmo de dominação que traz aquela figura do macho alfa branco ocidental. Ser ciborgue é ser XXY (referencio aqui um filme que em breve será de análise desta coluna), é não ovacionar crenças universais e totalizantes de dominação do homem (aquele macho alfa branco ocidental burguês e etc – chamarei aqui de homem e etc...) sobre as formas de vida que insistem, é apostar em outras histórias. “Por um cinema mais Ciborgue”. Pretendo trazer aqui, a partir da próxima coluna, os filmes que nos contam outras histórias, histórias trans, histórias feministas, histórias queer, histórias ciborgues.
Ser Ciborgue é apostar na liberdade e usar suas possibilidades. |
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LAILA DOMITH é professora. Mestre e doutoranda em Estudos da Subjetividade pela UFF, cineclubista e ciborgue. A sua tese atravessa as tecnologias da comunicação e as performatividades dissidentes de gênero e sexualidade. |
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POR UM CINEMA MAIS CIBORGUE
Cinema e feminismo nos dias de hoje.
POR LAILA DOMITH
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